Falamos de um homem que fundou colégios, escolas e obras de caridade no meio do mundo, deixando dezesseis mil páginas escritas. Mas que sempre quis somente ser chamado do modo mais simples: “Sacerdote”.
por Paola Bergamini
Por onde começar o perfil desse santo que viveu em dois séculos? Pelas muitas obras de caridade que gerou, disseminadas pela Itália e por todo o mundo? Pelas cerca de 16.500 páginas escritas, entre cartas, artigos e anotações? Pelos seus relacionamentos e amizade com os homens mais importantes do seu tempo? Ele, Luís Orione – nascido em Pontecurone, na província de Alessandra (Itália), no dia 23 de junho de 1872, cujo pai trabalhava no calçamento de ruas/estradas e tinha alguns problemas com o incenso das igrejas e cuja mãe era camponesa e tinha uma fé de ferro –, diria a respeito: “Deixe estar, não perca tempo. Eu não fiz nada, não fundei nada”; e não por falsa modéstia, mas porque as coisas tinham se desenvolvido assim mesmo: ele apenas havia seguido as inspirações da Providência divina, dia após dia. Fizera seu o lema paulino: “ Instaurare omnia in Cristo ”. Claro, tinha olhos atentos para a realidade, como escreveu o “amigo” Ignazio Silone: “O que ficou gravado em minha mente era a pacata ternura do seu olhar. (...) Difícil esquecer aquele olhar. A luz dos seus olhos tinha a bondade de quem havia sofrido pacientemente todo tipo de tribulação e, por isso, conhecia as dores mais secretas”. O que o escritor siciliano não conseguiu “ver” foi que esse olhar tinha sua origem na Misericórdia do Pai.
Tentemos, então, surpreendê-lo em alguns encontros e eventos que marcaram a sua vida, dentro da realidade quotidiana na qual mergulhou profundamente, ao ponto de mudá-la, seguindo a obra de um Outro.
Estamos em 1892. Semana Santa. Num canto da catedral de Tortona (Itália), um jovenzinho chora. Luís se aproxima: “O que aconteceu?”. “É por causa do catecismo. Não vou mais. Eu só apanho, porque não estudo”. “Façamos o seguinte: venha comigo que eu mesmo vou te ensinar o catecismo; fique tranquilo, eu não bato em ninguém”. Juntos sobem a escada até uma salinha, numa casa à sombra da igreja onde Luís vive; de fato, para manter os estudos no seminário, ele ajuda o sacristão em várias tarefas; em troca, lhe é oferecida casa, comida e uma pequena ajuda de custo. No fim da conversa, diz ao rapaz: “Venha mais vezes e traga os seus amigos”. “Com certeza!”. Alguns dias depois, escreveu num caderninho: “Chamar muitos jovens, atraí-los, fazê-los santos”.
Esse encontro foi o início de tudo. Nos dias seguintes, em volta da Catedral ecoam as vozes dos meninos, cujo número aumenta dia após dia. Eles jogam, brincam e rezam. Luís mostra-lhes um cristianismo que deixa as pessoas felizes durante toda a jornada diária. E, às vezes, parece que lê os corações deles. Mas o barulho daquela turma incomoda alguns prelados. Então, dom Bandi, bispo da cidade, permite-lhes que usem o próprio jardim episcopal. Cresce cada dia o número de jovens. Mas em Tortona as más línguas falam desse clérigo meio doido e do seu “esquisito” oratório. Um zeloso professor inclusive o denuncia, acusando-o de fazer propaganda papalina. Talvez seja verdade, no sentido de que Luís ama a Igreja e o seu Vigário na Terra. Forma-se o partido dos bem-pensantes, que fazem chegar ao bispo o próprio protesto. Dom Bandi manda fechar o oratório. Embora consternado, Luís obedece. Será assim durante toda a sua vida: jamais deixará de obedecer aos seus superiores, como sinal de amor à Igreja.
Depois de um mês, dia 16 de setembro de 1893, volta ao bispo com uma proposta: abrir uma casa destinada a acolher as vocações dos que não têm dinheiro para pagar os estudos. Ideia muito boa, “mas o que você quer de mim? Dinheiro eu não tenho”. “Desejo apenas a vossa aprovação e a vossa bênção”. Só isso... O bispo concede ambas. Mas Luís continua sem a casa e sem o dinheiro. A Providência dará um jeito, pensa. Através de um amigo do seminário, encontra uma construção no bairro mal-afamado de São Bernardino, e também aparece o dinheiro para pagar o aluguel. Os jovens começam a afluir dos vales do Curone, Staffera, Borbera. É o núcleo da futura “Pequena Obra da Divina Providência”. O colégio é aberto no dia 15 de outubro de 1893. Luís tem 21 anos de idade; alguns clérigos do seminário vêm ajudá-lo; depois da ordenação sacerdotal, permanecerão definitivamente com ele. Entre estes, padre Carlo Sterpi, o amigo silencioso e trabalhador que a Providência coloca ao seu lado por toda a sua vida. Luís, além do oratório, precisa pensar nos próprios estudos: desfruta cada minuto, para ele o tempo precisa render, é dom de Deus. Os resultados são sempre ótimos, em todas as matérias.
Dia 13 de abril, é ordenado sacerdote, e durante a sua primeira missa impõe a batina em alguns jovens que querem segui-lo na estrada vocacional. O colégio transfere-se para um edifício maior, o ex-mosteiro de Santa Clara, para poder atender a todos os pedidos. Cresce o número de interessados, mas crescem também os comentários maldosos. Ele segue em frente, pensa apenas nos seus jovens, quer oferecer a todos eles uma educação católica. Não basta: num momento histórico em que o laicismo começa a minar a sociedade, vai de paróquia em paróquia pregando. Muitos acorrem para ouvi-lo, e a fila diante do seu confessionário é sempre muito grande. Realmente, parece que a sua jornada tem mais do que 24 horas. Escreve: “É preciso ir ao encontro do povo, sacrificar-se até a morte, mas fazê-lo cristão de novo”. Partindo dos mais pobres, dos mais necessitados.
As obras se multiplicam: colégios, escolas, orfanatos, colônias agrícolas, comunidades eremíticas. Toda vez a Providência manda sinais e aplaina os caminhos. Mas nada é deixado ao acaso, nada é improvisado. Porque não basta tornar menos desumana a vida, criar condições adequadas: é preciso, antes de tudo, satisfazer o desejo de sentido que existe em todos os homens. Indicar o único caminho: Cristo. Crescem as relações e as amizades. Dom Orione tem tempo para todos: para o jovem recém-chegado ao colégio, para os prelados, os homens de cultura... os Papas, que sempre encorajam a sua obra e que até lhe pedem conselho. Não se esquece de ninguém, como o demonstram as muitas cartas que escreveu.
Vinte e oito de dezembro de 1908. Terrível terremoto devasta a Sicília. Messina é praticamente arrasada. Mais de oitenta mil vítimas. É uma das piores catástrofes da história. Dom Orione preocupa-se com os seus jovens da Casa da cidade de Noto: como estarão? Decide ir até lá. Dia 14 de janeiro desembarca em Messina; nas mãos, algumas cartas de recomendação escritas por dom Pietro La Fontane, futuro patriarca de Veneza – como salvo-conduto para as autoridades civis e religiosas. O prefeito confia-lhe os órfãos. Dom Orione, em poucas semanas, procurando entre as ruínas, resgata mais de dois mil órfãos, que encaminha às Casas de Cassano e de Noto. Compreende que essas crianças precisam ser socorridas e amadas dentro da Igreja. Dom Orione sabe que não basta oferecer-lhes teto e comida. É para a vida delas, para a sua educação, que ele dedica um cuidado especial. Além das crianças há também os adultos, que na tragédia parecem ter perdido toda esperança num Deus misericordioso, e assim todo dia padre Luís toca a campainha, reúne o povo e prega. Suas palavras vão direto aos corações: naquele homem que jamais se cansa, a roupa suja de barro, o rosto pálido, sempre em ação, veem a presença de um Deus bom. Podem, então, recuperar a esperança e começar a reconstrução. Dom Orione fica em Messina por três anos, fazendo também o papel de mediador entre os comitês de ajuda laicos e católicos. Mas uma nova tempestade abate-se sobre ele.
Em março de 1908, constitui-se a “ Associazione nazionale per gli interessi del Mezzogiorno ”, com o objetivo de ajudar as populações atingidas pelo desastre. Um grande grupo de modernistas compõe a associação. Em 1907, com a encíclica Pascendi Dominaci Gregis , de Pio X, e o decreto Lamentabili , do Santo Ofício, a Igreja havia condenado o modernismo. Dom Orione conhece muitos expoentes – entre os quais Tommaso Gallarati-Scotti, padre Giovanni Semeria, Romolo Murri – e com eles estabelece amizade. Embora permanecendo firme em suas posições ortodoxas, de absoluta fidelidade ao Papa, nunca os abandonará. E eles também lhe dedicam lealdade e amizade fraterna. “Devo dizer que, talvez, a única pessoa que foi generosa e compreensiva com quem podia ter momentos de dúvida e de inquietação, naquele momento, foi dom Orione. Há algo na alma humana que responde ao toque do santo, tão profundo e tão oculto, mas vibra quando sente a voz de Deus nessa caridade que salva. Essa é a primeira grande experiência que eu tive dele e que nunca esquecerei”, testemunha Gallarati-Scotti. Mas alguns não veem com bons olhos essas amizades, nem o seu modo de agir, espontâneo e concreto. Chega ao Santo Ofício uma carta acusatória que define o padre de Tortona como um “homem de meia consciência, que sabe ficar bem com todos”. A missiva vai a Pio X. Dom Orione é convocado a Roma. Mas bastam poucas palavras para que o Papa compreenda que aquele “estranho padre” é movido apenas pela caridade. Os santos se entendem! Mais: nomeia-o vigário-geral da diocese de Messina e dá-lhe total liberdade de ação para o relacionamento com os modernistas.
Na barafunda do terremoto teve, porém, a oportunidade de ter ao seu lado o cônego Aníbal de França. Não é o único santo e fundador com quem dom Orione estreita relações: na juventude, estivera por dois anos em Valdocco, com dom Bosco, e depois a Providência coloca em seu caminho Pio X, Luigi Guanella, o cardeal Ildefonso Schuster, João XXIII...
O olhar de dom Orione vai longe, além-mar, onde chegara a notícia das suas obras. Em 1913, partem os primeiros missionários para o Brasil. Dois anos depois, está de novo na linha de frente após o terremoto que devastou Marsica, na região de Abruzzo, procurando os órfãos (que distribui pelas várias Casas), consolando, pregando a Palavra de Deus. E de novo é a sua pessoa, o seu agir, que dá testemunho de uma caridade infinita. Depois do terremoto, a primeira guerra mundial – “um massacre inútil” – flagela a Itália. E aí há também o problema dos órfãos de guerra. A Obra amplia-se: não só abrigo para esses jovens abandonados, mas também escolas profissionais visando prepará-los para o futuro. Para os mais infelizes, para os anciãos, para os homens de rua, para os marginalizados, funda o Pequeno Cotolengo, primeiramente em Gênova, depois em Milão. Quer dizer, ele não funda nada, apenas responde ao que a Providência lhe pede. As missões no Exterior se expandem: Cafarnaum; Rodi, onde são acolhidos os refugiados armênios; Polônia, e de novo a América Latina, para onde faz sua primeira viagem em 1921. E depois..., impossível acompanhá-lo. Tem-se a impressão, lendo sua biografia, que a Providência sobrecarrega os ombros desse “operário de Deus”.
Em 1934, ele embarca para a América Latina. Companheiro de viagem é o cardeal Eugênio Pacelli, seu amigo e futuro Papa, que se dirigia a Buenos Aires para o Congresso Eucarístico. Nos três anos que passou no continente sul-americano, percorreu uma distância dez vezes superior àquela existente entre Itália e Argentina. Funda casas, colégios, escolas. Está sempre no meio do povo, entre os mais pobres, mergulhado na realidade local. Sua sala está sempre cheia de gente, assim como seu confessionário.
Em 1936, quando fica sabendo da invasão da Etiópia pelas tropas de Mussolini, entende que se desenha um horizonte negro e comenta: “Por que o mundo é tão confuso, infeliz, e se precipita na barbárie? Porque não vive de Deus: vive de egoísmo”. Quando retorna para a Itália está fisicamente exausto.
Sanremo, 12 de março de 1940. Dom Orione está de joelhos, rezando. Alguns dias antes, um ataque de angina pectoris quase o derrubou. O bom amigo padre Sterpi convenceu-o a parar um pouco e repousar na Casa em Riviera. O médico foi muito claro: suas condições físicas são muito graves. Chamam-no ao telefone; é o sr. Achille Malcovati, que lhe pede que acolha uma pobre senhora doente no Pequeno Cotolengo. “Bem, caro amigo. Traga-a imediatamente”. Volta para o quarto, escreve uma carta, e depois se deita na cama. Passada meia-hora, o clérigo-enfermeiro Modesto ouve gemidos. Corre para o quarto, junto com o padre Barriani. Dom Orione olha fixo para o enfermeiro e diz: “Estou indo... Estou indo... Jesus! Jesus!”.
Sobre seu túmulo são esculpidas estas palavras: “ Aloysius Orione Sacerdos. Te Christus in Pace ”. “Sacerdote”, a única definição que ele aceitava de si mesmo.
Dia 16 de maio de 2004, dom Luís Orione é canonizado na Praça São Pedro pelo papa João Paulo II.
Mais informações
Uma bela e rica biografia foi escrita por Giorgio Papasogli, publicada no Brasil: Vida de Dom Orione (Ed. Loyola, São Paulo, 520 páginas, R$ 46,20).